quinta-feira, 20 de junho de 2013

A partilha do vinagre

Ontem fomos às ruas para o embate por um país mais justo! Enfrentamos a polícia, o sol e o cansaço... Ontem vimos as páginas dos livros de história saltar diante dos nossos olhos, imagens cheias de vida, suor e lágrimas! Ontem vi a revolta nos rostos dos meus irmãos, o medo e o desespero de quem, desarmado e de peito aberto, enfrentava escudos apenas segurando a bandeira do Brasil! Mas não é sobre isso que pretendo escrever hoje, na verdade ao pensar sobre todo o dia de ontem vem à mente palavras como solidariedade, afeto, paixão, companheirismo e amor. Por isso esse texto é sobre “partilha”! Permitam-me fazer uma lista mais detalhada delas:
A primeira partilha deu-se no caminho para a manifestação, quando dois ônibus lotados de manifestantes pararam lado a lado no sinal e, mesmo estando em ônibus diferentes, ambos abarrotados, todos começaram a cantar “eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor”! Nem tínhamos chegado ainda... Quando desci do ônibus minha segunda partilha foi o olhar e o sorriso sincero de minha amiga Jandira Fontenele, abraçamo-nos como quem reconhece uma espécie de firma espiritual para a batalha, ficamos juntos até o fim da manifestação.
Chegamos a avançar bem pouco antes de escutar os primeiros estrondos de tiros e bombas, era incrível a coexistência do medo com os passos que nos moviam até o front! Enquanto gritávamos “SEM RECUAR”, mantínhamos firme a caminhada para frente, até vislumbrarmos... Escudos, capacetes, escopetas de um lado e nós do outro, foi quando o som dos tiros retornaram e uma nuvem branca emanou do chão em segundos, mal tive tempo para reparar no número de bombas ao redor. Gritos, correria, olhos ardendo e os pulmões sufocados, era este o cenário da terceira partilha: a partilha das mãos! Segurávamos uns as mãos dos outros como quem dá força ao irmão perdido! Chorávamos, por vezes chegamos a pensar que não conseguiríamos sair daquela nuvem pestilenta antes do avanço da tropa de choque sobre nós... Saímos, eu gritava! Urrava por ar nos meus pulmões, mas não soltamos as mãos, sabíamos que éramos naquele momento o único apoio do outro. Minha amiga tentava colocar o lenço com vinagre em meu rosto, mas eu não queria! Queria de volta o ar da minha cidade dentro do meu peito!!!
Quando abrimos os olhos percebemos que eu tinha perdido meus óculos! Havia caído em meu ao turbilhão de passos e veneno. E esta foi minha quarta partilha do dia: Consegui voltar à frente e depois de procurar um pouco vi um casal e o jovem estava segurando o MEU óculos, não acreditei... Abracei-o, ainda com os olhos cheios de lágrimas, agradeci e eles ficaram lá, sorrindo como se soubessem que são exatamente estes atos de solidariedade e companheirismo que irão mudar o mundo.
A polícia veio para cima com toda a força, quando sentávamos ela voltava a jogar bombas e tiros como se quisessem espantar algum animal do quintal de casa, senti como se a FIFA tivesse loteado minha cidade e não me permitisse passar por suas ruas! Como educador sempre andei em todas as comunidades de Fortaleza, mesmo nas mais violentas, com maiores índices de vulnerabilidade, nunca fui mal recebido em nenhuma delas, A FIFA e o governador agora não queria que eu me manifestasse sequer perto do estádio que foi construído com o meu dinheiro... Em meio a tiros e gás lacrimogênio recuamos! Soubemos que em uma segunda via de acesso ao estádio outr@s companheir@s estavam lutando...
O acesso pela avenida Paulino Rocha ficava há cerca de 7 km de onde estávamos, optamos  por partilhar mais uma vez! Caminharíamos sob o sol escaldante do nosso nordeste, marcharíamos sobre a BR-16 para provar que estávamos dispostos a parar a cidade para chegar ao outro front, assim fizemos uma marcha linda, cheia de gritos sobre a nossa predileção pela educação de nossas crianças, pela valorização dos nossos professores, pela urgência da seca, por um país laico, justo e ético!
Ao chegarmos no outro local de concentração muitas pessoas já se dispersavam, parecia que aproximávamos do fim da manifestação. Estávamos todos sentados, conversando, batucando e cantando, ou seja, a caricatura perfeita de uma “manifestação pacífica”. Qual foi a reação da tropa de choque? Tiros e bombas!!! Como se quisessem deixar claro que “o jogo está acabando e não queremos vocês aqui para atrapalhar a saída da FIFA e da Seleção Brasileira”. O helicóptero nos sobrevoava, dava “tchauzinho” e jogava bombas em todas as pessoas, assim começou mais uma onda de agonia e desespero! No meio de um turbilhão de pessoas avistamos um jovem caído no chão, exausto, semiacordado. Senti que eu também devia uma partilha para aquela manifestação, levantei-o pelo braço, demos vinagre e o guiamos para fora da multidão.
A polícia nos encurralou novamente e parecia que tudo iria terminar assim, enxotados! No entanto ao retornar para a BR vimos alguns manifestantes tentando fechar novamente a rodovia, teimosos feito o sertanejo e a seca... Não poderíamos deixar de partilhar isso! Fomos todos para o meio da rua! Paramos novamente a BR e caminhamos mais 10 km até o centro da cidade, como boxeador que se recusa a cair e levanta aos 7 segundos de contagem! Caminhávamos entre os carros, gritávamos por um país melhor com o peito cheio de esperança, fazíamos correntes humanas com a sensação de que esta se estendia até São Paulo, até o Rio de Janeiro, Alemanha, Dublin, Portugal, Turquia... Como se o mundo todo quisesse mudar! A maravilhosa sensação de fazer história na cidade que me criou, no chão onde eu cresci, na terra que é minha!
Quando chegamos no centro da cidade alguns companheiros ainda fecharam a avenida principal, nossas pernas já não aguentavam, decidimos continuar a caminhada no sentido de nossas casas... Passamos pela praça e havia um casal sentado, com a cara pintada a menina olhou e disse “vocês querem bolo?”, eu tinha comido o dia todo: um pedaço de bolo, uma mordida de maçã e uma barra cereal oferecida por uma amiga, estava faminto! Aceitei e esta foi minha última partilha do dia! Era um bolo delicioso, com sabor de vida, de amor... Um leve aroma de revolução!

http://www.youtube.com/watch?v=iRilah5GHe4&feature=youtu.be