Em certa praia, há muito tempo
atrás, morava um marinheiro. Vivia ali há muitos anos, em uma barraca bem
simples e afastada da comunidade ribeirinha, aliás, visitava a comunidade
apenas em casos de necessidade. Sempre muito educado, resolvia o que precisava
e logo voltava para a praia, sua barraca ficava em cima de uma ribanceira,
entre alguns coqueiros, de onde se via toda a comunidade de um lado e a
imensidão do mar do outro. Ancorado na praia seu pequeno barco era sua maior
riqueza, tudo o que tinha de mais precioso! Quando entrava em alto mar nada
mais lhe importava, sentia-se pleno. Fechava os olhos e atava seu espírito às ondas
que entoavam cantigas que pareciam tocar-lhe a alma! Sentia como se vivesse
apenas para aquilo, que tudo o mais de importante não era tão importante quanto
ele e o mar...
Levava a vida assim, pescava
alguns peixes, vendia para comprar o que precisasse, mas a pesca era apenas por
necessidade, seu amor era o balançar das ondas! Então todos os dias pela manhã,
alguns minutos antes do sol surgir na linha do horizonte, ele descia até a
praia, subia sobre o teto do barco e assistia o nascer do dia. Depois navegava...
Voltava apenas quando os últimos raios de sol estivessem desaparecendo no
poente, e assim viveu por muitos anos.
Houve um dia que a comunidade
percebeu que o marinheiro não estava mais vindo vender seus peixes, já fazia
algumas semanas que ninguém o via, e resolveram então visitar a cabana para
averiguar a situação. Ao chegar se depararam com o homem estirado em sua cama,
queimando em febre e muito fraco.
¾
O que houve homem? – Perguntou logo o primeiro
que entrou...
¾
Nada demais meu caro. Estou apenas morrendo,
como todos, a mera diferença é que estou um pouco mais próximo de meus momentos
finais. – Sua voz parecia cansada e forçosa, mas falou aquilo de forma tão
tranqüila que todos ficaram sem reação. – E, tendo em vista meu estado peço que
escutem meu último desejo. Pois bem, peço-lhes que logo após o apagar de minha
última centelha de vida, que coloquem meu corpo dentro do navio, levantem a
ancora e deixem que eu parta à deriva.
Aquilo era um absurdo! Todos ali
sabiam bem que, segundo o ritual daquele povo, o corpo precisava ser cremado
para que alma se libertasse finalmente de sua prisão e pudesse voltar para o
seu divino lugar. Pedir aquilo seria condenar-se a vagar sem rumo por toda a
eternidade.
¾
Você está louco homem?! Como pode desejar isso para
si?
¾
Não se preocupem meus caros. – Sua voz era cada
vez mais fraca – Vou contar-lhes uma breve história. Antes de vim parar nestas
praias servi a marinha de nosso país na guerra. Lá conheci o ódio, o medo e
todas as outras desgraças do homem... Conheci também o vazio, não sei bem como
explicar, mas era um vazio horrendo, uma angústia que tomava conta de mim e
parecia me torturar a cada dia. Este vazio era amenizado apenas quando estava em alto
mar, longe da guerra e de qualquer outro som que não fosse o mar e o vento!
Eram estes os únicos momentos que conseguiam fazer com que minha alma se
tranqüilizasse um pouco, apenas nestes momentos que voltava a ser um homem
feliz. Foi dessa forma que comprei meu velho barco e vim parar aqui. E por mais
que nunca tenha sido compreendido por vocês, por mais que parecesse estranho ou
loucura, não podia deixar de passar o dia velejando... Apenas assim conseguia
enganar um pouco o vazio e me sentir pleno! Mesmo que todo o resto do mundo
fosse contra, não podia conviver com aquela angústia por nada... Ansiava pelo
mar, amava as ondas, e não podia fugir disso! Enfim, devo a paz de minha vida
ao mar, e isso vocês nunca entenderiam... Deixo então meu último pedido.
Assim morreu o velho marinheiro.
Uma morte tranqüila. A contra gosto realizaram seu último pedido e viram seu
barco sumir na imensidão azul... Ninguém nunca entendeu sua paixão pelo mar...
E ele nunca precisou que alguém entendesse!
“O homem velho deixa a vida e
morte para trás, cabeça a prumo, segue rumo, e nunca, nunca mais... (Caetano
Veloso)”