segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O barco, o mar, o vazio e o amante.


Em certa praia, há muito tempo atrás, morava um marinheiro. Vivia ali há muitos anos, em uma barraca bem simples e afastada da comunidade ribeirinha, aliás, visitava a comunidade apenas em casos de necessidade. Sempre muito educado, resolvia o que precisava e logo voltava para a praia, sua barraca ficava em cima de uma ribanceira, entre alguns coqueiros, de onde se via toda a comunidade de um lado e a imensidão do mar do outro. Ancorado na praia seu pequeno barco era sua maior riqueza, tudo o que tinha de mais precioso! Quando entrava em alto mar nada mais lhe importava, sentia-se pleno. Fechava os olhos e atava seu espírito às ondas que entoavam cantigas que pareciam tocar-lhe a alma! Sentia como se vivesse apenas para aquilo, que tudo o mais de importante não era tão importante quanto ele e o mar...

Levava a vida assim, pescava alguns peixes, vendia para comprar o que precisasse, mas a pesca era apenas por necessidade, seu amor era o balançar das ondas! Então todos os dias pela manhã, alguns minutos antes do sol surgir na linha do horizonte, ele descia até a praia, subia sobre o teto do barco e assistia o nascer do dia. Depois navegava... Voltava apenas quando os últimos raios de sol estivessem desaparecendo no poente, e assim viveu por muitos anos.

Houve um dia que a comunidade percebeu que o marinheiro não estava mais vindo vender seus peixes, já fazia algumas semanas que ninguém o via, e resolveram então visitar a cabana para averiguar a situação. Ao chegar se depararam com o homem estirado em sua cama, queimando em febre e muito fraco.

¾  O que houve homem? – Perguntou logo o primeiro que entrou...
¾  Nada demais meu caro. Estou apenas morrendo, como todos, a mera diferença é que estou um pouco mais próximo de meus momentos finais. – Sua voz parecia cansada e forçosa, mas falou aquilo de forma tão tranqüila que todos ficaram sem reação. – E, tendo em vista meu estado peço que escutem meu último desejo. Pois bem, peço-lhes que logo após o apagar de minha última centelha de vida, que coloquem meu corpo dentro do navio, levantem a ancora e deixem que eu parta à deriva.

Aquilo era um absurdo! Todos ali sabiam bem que, segundo o ritual daquele povo, o corpo precisava ser cremado para que alma se libertasse finalmente de sua prisão e pudesse voltar para o seu divino lugar. Pedir aquilo seria condenar-se a vagar sem rumo por toda a eternidade.

¾  Você está louco homem?! Como pode desejar isso para si?
¾  Não se preocupem meus caros. – Sua voz era cada vez mais fraca – Vou contar-lhes uma breve história. Antes de vim parar nestas praias servi a marinha de nosso país na guerra. Lá conheci o ódio, o medo e todas as outras desgraças do homem... Conheci também o vazio, não sei bem como explicar, mas era um vazio horrendo, uma angústia que tomava conta de mim e parecia me torturar a cada dia. Este vazio era amenizado apenas quando estava em alto mar, longe da guerra e de qualquer outro som que não fosse o mar e o vento! Eram estes os únicos momentos que conseguiam fazer com que minha alma se tranqüilizasse um pouco, apenas nestes momentos que voltava a ser um homem feliz. Foi dessa forma que comprei meu velho barco e vim parar aqui. E por mais que nunca tenha sido compreendido por vocês, por mais que parecesse estranho ou loucura, não podia deixar de passar o dia velejando... Apenas assim conseguia enganar um pouco o vazio e me sentir pleno! Mesmo que todo o resto do mundo fosse contra, não podia conviver com aquela angústia por nada... Ansiava pelo mar, amava as ondas, e não podia fugir disso! Enfim, devo a paz de minha vida ao mar, e isso vocês nunca entenderiam... Deixo então meu último pedido.

Assim morreu o velho marinheiro. Uma morte tranqüila. A contra gosto realizaram seu último pedido e viram seu barco sumir na imensidão azul... Ninguém nunca entendeu sua paixão pelo mar... E ele nunca precisou que alguém entendesse!

“O homem velho deixa a vida e morte para trás, cabeça a prumo, segue rumo, e nunca, nunca mais... (Caetano Veloso)”